terça-feira, 24 de março de 2009

Cinema e realidade


A discussão sobre cinema e realidade tem sabor de comida requentada. Mas, vez por outra, alguém resolve meter o garfo pra tirar pelo menos um pedacinho dela.
O pedaço, ou melhor, o filme da vez é “Quem quer ser um milionário?”, do cineasta britânico Danny Boyle, ganhador de oito oscars. A “fidelidade” ou não desta obra à realidade da Índia tem sido discussão constante em blogs e sites de cinema. Aí eu me pergunto: que realidade?
Se nem o documentário – irmão do cinema que tem uma relação mais íntima com a realidade – tem a obrigação de funcionar como um registro fotográfico, ou, como escreveu o crítico de cinema e autor de ensaios sobre o cinema brasileiro e latino-americano, José Carlos Avellar, “o documentário mostra a realidade não exatamente como ela é, mas como foi percebida e sentida pelo realizador”, por que o cinema haveria de ter?
Justiça seja feita, o filme de Boyle mostra uma Índia extremamente convincente, independentemente se aquilo é um recorte da realidade ou não. Aliás, qualquer filme que se pretenda realista é sempre um retalho de realidade e boa parte das pessoas se esquece disso. “Quem quer ser um milionário” mostra uma Índia de miséria, violência e esperteza. Isso não quer dizer que o país seja reduzido a esse recorte, mas que o diretor, enquanto artista, quis enfatizar este aspecto.
Mesmo com todo o investimento na face mais cruel daquele país, Boyle soube dosar bem os momentos mais tensos com outros mais divertidos. No fim, a mensagem que fica é bem otimista e a emoção surge espontaneamente, sem caras e bocas trêmulas para provocar isso.
Por isso, nós brasileiros, devemos reconhecer o merecimento do filme “Quem quer ser um milionário?” e deixar de fazer comparações com o nosso “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles, 2002). Embora o enredo de ambos tenha como pano de fundo a violência nas periferias das grandes cidades, naquele há uma atmosfera mais lírica, enquanto este último é mais cru. Então, em vez de ritmarmos o nosso recalque ao som de um bhangra, continuemos a embalá-lo com uma melancólica canção espanhola.